Lenda do Pastor da Corrente de Ouro
Ouvi esta lenda do Alentejo em pleno Alentejo. Nasceu em Benavila e tem quase tanto tempo como essa mesma vila alentejana.
A ocupação leonesa tomara conta deste belo rincão, onde o calor encontrara arvored...o que o impedisse de malfazer, e o frio lenha bastante para suavizar a sua rude presença.
Nesse tempo — há muitos anos, muitos anos — existia em Benavila — então chamada Boena Vila — um espanhol poderoso chamado Gonzalez Butrón. Perto deste castro havia um outro ocupado por um fidalgo português, D. Pedro de Miranda, que viera da província de Entre-Douro-e-Minho e aí se casara com uma jovem da Casa de Guevara, rival da de Butrón. Desse casamento nascera uma filha, a formosa Madalena, que era o encanto de quantos tinham a dita de a ver de perto.
Madalena foi crescendo. Não saía dos seus domínios, visto que os de Butrón não podiam ver os de Guevara, especialmente o seu chefe, D. Pedro de Miranda. Para evitar distúrbios, estas famílias evitavam-se, crentes que mais tarde ou mais cedo uma delas teria de abandonar a terra. Ora D. Pedro de Miranda, ciente disso, fez constar a Gonzalez Butrón que a terra onde se viera instalar pertencia aos Portugueses e, portanto, seria razoável que procurasse abrigo fora das fronteiras de Portugal. E esse conselho caiu em casa dos Butrón como um raio devastador. Então, Gonzalez formou o seu plano.
A tarde começara, com todo o seu cortejo de sol e sombra. Madalena espreitava o campo através das frestas das janelas do pátio coberto. Esperava alguém. Vigiava o exterior e o interior do solar. Receava ser vista por sua mãe, pois sabia que não tinha ordem para permanecer ali sozinha. Mas Madalena — com doze anos apenas — amava em silêncio um jovem de quinze anos, pastor rico mas sem pergaminhos. Todas as tardes, ao descer com o gado da serra, desviava a sua rota para vir falar à sua princesa encantada. E toda a sua ambição era alistar-se para ganhar fama nas guerras.
José, o pastor, surgiu no cimo da serra. Parecia apressado. Madalena sorriu, notando a sua pressa. Desceu furtivamente até ao portão. Colocou um xaile grosseiro sobre os ombros. E misturando-se com as raparigas que vinham do trabalho do campo, saiu para o terreiro.
Quando o pastor se aproximou da árvore atrás da qual se escondera, Madalena saiu-lhe ao caminho. José perguntou:
— Onde está o teu pai?
Parecia aflito. Madalena sorriu-lhe gaiata.
— Não te apoquentes... Está para o campo. Só deve vir quase à noitinha.
Ele pareceu ainda mais inquieto.
— É isso mesmo!
— O quê?
José não sorria, não beijava as mãos da sua menina. Segredou-lhe:
— Vai para dentro! Vim avisar-te de que tenho um assunto grave a tratar esta tarde.
Foi a vez de ela se inquietar.
— Que assunto?
— Os de Butrón preparam uma cilada ao teu pai...
— Onde?
— Para lá da ponte. Quero avisá-lo!
A menina juntou as mãos. Implorou:
— Então vai depressa, José! Vai depressa... mas que eles não te apanhem também!
— Eles não sabem do nosso segredo. Ninguém o conhece. Só nós os dois!
— Então vai!
— Até amanhã! Não saias de ao pé da tua mãe, nem que venham dizer-te que teu pai te chamou!
E José partiu correndo. E a menina entrou em casa chorando. Tirou o xaile grosseiro e pretextou uma indisposição para justificar a sua angústia.
A uns duzentos metros da ponte, José surgiu no caminho, metendo-se quase debaixo das patas do cavalo de D. Pedro de Miranda. O fidalgo estacou. Os dois servidores que o acompanhavam rodearam José. E o fidalgo perguntou, surpreendido:
— Que queres de mim?
José não perdeu tempo com rodeios.
— Senhor! Venho avisar-vos de que a uns vinte metros da ponte está preparada uma emboscada para vos matarem!
D. Pedro franziu as sobrancelhas, enrugando a testa tostada pelo sol.
— Uma emboscada? Preparada por quem?
— Bem o sabeis, senhor!
— Pelos de Butrón?
— Esses mesmos!
— E como o soubeste?
— Fui lá vender queijos e lã. Sou amigo de um dos servidores da casa. Ouvi umas coisas suspeitas... e consegui saber toda a verdade.
— E porque me vens avisar?
Pela primeira vez, José mostrou-se perturbado:
— Senhor, eu... Bem vê...
O outro interrompeu-o:
— Conheces o Butrón melhor do que a mim!
— Sou português, senhor… e vós estais em perigo!
D. Pedro de Miranda ordenou a um dos seus servidores:
— Desmonta e vai verificar, a pé, se este rapaz fala verdade. Despacha-te!
— Se demorais, eles podem vir até aqui. E são alguns dez!
D. Pedro meneou a cabeça.
— Acredito em ti, rapaz! Daremos a volta pelo lado do poente. É mais uma hora de caminho. Depois avisarei o nosso rei. Ou tomo uma desforra... ou eles terão de ser expulsos!
Pouco tempo depois, o criado voltava, confirmando a emboscada. Num ar galhardo de fidalguia, D. Pedro tirou do peito uma corrente de ouro e colocou-a ao pescoço do jovem pastor, dizendo-lhe:
— Vai! Hei-de compensar-te melhor!
— Senhor, de nada mais preciso senão da vossa simpatia! O gado que apascento é meu. A casa onde habito é minha.
— Pois bem! Se algum dia precisares de mim, basta que abras a camisa e mostres essa corrente de ouro. Volta em paz para a tua casa.
— Que Deus vos acompanhe, senhor!
O Sol vinha descendo no horizonte. Mas a luz ainda era forte. D. Pedro deu rédeas ao cavalo e seguiu na direcção do poente.
Três anos passaram. O senhor de Butrón acabou por vender os terrenos em Benavila e comprar um castelo em Achorroz. Mas quem comprou a casa de Butrón foi um sobrinho de D. Pedro que regressara da guerra contra os infiéis. Logo D. Pedro pensou casá-lo com sua filha Madalena. E porque ela era bonita, também seu primo logo ficou apaixonado. Porém, Madalena amava José. Era-lhe impossível dar o seu coração a outro que não fosse o jovem que deixara de apascentar rebanhos e viera também da guerra com o posto de alferes.
Deste amor só o confessor de Madalena tinha conhecimento. E então, a pedido da jovem, que chorava dia e noite, o sacerdote conseguiu que o bispo não concedesse a licença de casamento necessária, invocando o próximo parentesco entre Madalena e seu primo. Parecia salva a situação. D. Pedro ficara furioso e fizera novo pedido. Porém, seu sobrinho — homem de poucos escrúpulos — julgou que arranjara outro meio para obter licença. E se bem o pensou, melhor o fez.
O Inverno chegou com todo o seu cortejo de sombras, chuva e ventania. Dobravam-se as ramadas das árvores, gemendo doloridas. Uivava o vento num desespero incontido, levando na sua frente a chuva, que ia e voltava, dançava e caía com fragor. O vento não se limitava a correr num sentido: fazia remoinho, como um louco que não sabe o que quer nem para onde vai.
A noite tornava ainda mais lúgubre esse quadro de invernia. Alguém comunicara a Madalena que o primo lhe rondava a porta, mesmo depois de se ter despedido para se ir deitar. A jovem fechara-se à chave, única forma de se isolar. O vento continuava zumbindo. E foi ainda o vento que lhe trouxe aos ouvidos uma ária muito sua conhecida: a canção predilecta de José. Mas a canção não tinha o ritmo alegre que ele lhe costumava dar. Era como um lamento, um pedido de alerta, que vinha de bem perto!
Madalena, com o coração batendo fortemente, abriu a janela. No varandim estava José. A jovem recuou.
— José! Que fazes aqui?
— Venho prevenir-te de que o teu primo possui uma chave do teu quarto e acaba de reentrar em casa.
— Uma chave? Mas quem lha deu?
— Não sei. Mandou-a fazer por outra que alguém obteve. Foi hoje buscá-la.
— E que pretende?
— Entrar neste quarto e comprometer-te, para teres de casar com ele!
Madalena levou as mãos ao rosto.
— Meu Deus! Se isso é verdade...
— Verás que não tarda aí!
— Que hei-de fazer, então? Se te vêem aqui...
— Foge comigo pela janela! Tenho uma corda por onde subi. Descerei contigo!
— Mas é muito alto!
— Eu sei. Mas saberei segurar-te.
— E para onde me levas?
— Para um convento. De lá comunicarás com teu pai e contar-lhe-ás o sucedido.
— E se ele não acreditar?
— Escolherás o melhor caminho.
Junto à porta, Madalena sentiu os passos de seu primo. Horrorizou-se e pediu a José:
Vamos descer! Prefiro ficar no convento para sempre, a ser esposa de um homem a quem detesto!
Não havia tempo a perder. José pegou em Madalena e começou a descida.
Com vagar, a chave rodou na fechadura do quarto de Madalena. Um homem abriu a porta e entrou. Não havia luz, mas a janela aberta batia com o vento. O homem chamou baixinho:
— Madalena! Madalena!
Como ninguém respondesse, correu à janela. Olhou na escuridão. Uma corda forte pendia e redemoinhava enquanto o par descia apressado. O homem compreendeu o que estava acontecendo. O ciúme e o desespero tomaram-no. Então, puxando pela espada, cortou a corda de um só golpe. No meio da tempestade, um grito de horror soou mais alto. O par enamorado acabava de encontrar a morte na queda violenta!
O vento rugiu mais forte ainda. Os cães uivaram. Acordaram as gentes da casa. O assassino fugiu. Porém, ao fugir, esbarrou na escada com D. Pedro. Este perguntou:
— Que fazes aqui?
— Venho de impedir uma fuga!
E empurrando o tio, abalou porta fora e nunca mais foi visto.
D. Pedro subiu as escadas, correndo para o quarto da filha. Lá em cima, a porta escancarada, a janela a bater. Acendeu uma luz. O aposento estava deserto. Foi à janela. Chamou:
— Madalena! Madalena!
De súbito reparou na corda cortada e um pensamento horroroso fê-lo correr até ao fosso do castelo. E aí viu dois corpos enlaçados. Dois corpos sem vida, jorrando sangue. Gritou:
— Tragam-me aqui Madalena e o outro! Quero saber quem é!
Depressa trouxeram os corpos ensanguentados, olhos abertos num espanto. Taparam o rosto de Madalena, para que D. Pedro o não visse, tão dilacerado estava. Mas quando o castelão se debruçou sobre o outro corpo, com uma luz que dificilmente se conservava acesa, no peito do morto viu uma corrente de ouro bem sua conhecida.
Levou as mãos ao rosto e ficou assim à chuva e ao vento, até que o obrigaram a regressar a casa.
Poucos dias depois, no mesmo local onde o par enamorado encontrara a morte, D. Pedro mandou erguer uma cruz com a seguinte inscrição: «José e Madalena. Rezem um padre-nosso por suas almas.»
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