segunda-feira, março 14

Lenda do Pastor da Corrente de Ouro

Havendo o evento AvisEstórias no dia 16 de Março de 2011 mais uma edição partilho convosco uma lenda do concelho que encontrei na internet


Lenda do Pastor da Corrente de Ouro

Ouvi esta lenda do Alentejo em pleno Alentejo. Nasceu em Benavila e tem quase tanto tempo como essa mesma vila alentejana.
A ocupação leonesa tomara conta deste belo rincão, onde o calor encontrara arvored...o que o impedisse de malfazer, e o frio lenha bastante para suavizar a sua rude presença.
Nesse tempo — há muitos anos, muitos anos — existia em Benavila — então chamada Boena Vila — um espanhol poderoso chamado Gonzalez Butrón. Perto deste castro havia um outro ocupado por um fidalgo português, D. Pedro de Miranda, que viera da província de Entre-Douro-e-Minho e aí se casara com uma jovem da Casa de Guevara, rival da de Butrón. Desse casamento nascera uma filha, a formosa Madalena, que era o encanto de quantos tinham a dita de a ver de perto.
Madalena foi crescendo. Não saía dos seus domínios, visto que os de Butrón não podiam ver os de Guevara, especialmente o seu chefe, D. Pedro de Miranda. Para evitar distúrbios, estas famílias evitavam-se, crentes que mais tarde ou mais cedo uma delas teria de abandonar a terra. Ora D. Pedro de Miranda, ciente disso, fez constar a Gonzalez Butrón que a terra onde se viera instalar pertencia aos Portugueses e, portanto, seria razoável que procurasse abrigo fora das fronteiras de Portugal. E esse conselho caiu em casa dos Butrón como um raio devastador. Então, Gonzalez formou o seu plano.

A tarde começara, com todo o seu cortejo de sol e sombra. Madalena espreitava o campo através das frestas das janelas do pátio coberto. Esperava alguém. Vigiava o exterior e o interior do solar. Receava ser vista por sua mãe, pois sabia que não tinha ordem para permanecer ali sozinha. Mas Madalena — com doze anos apenas — amava em silêncio um jovem de quinze anos, pastor rico mas sem pergaminhos. Todas as tardes, ao descer com o gado da serra, desviava a sua rota para vir falar à sua princesa encantada. E toda a sua ambição era alistar-se para ganhar fama nas guerras.
José, o pastor, surgiu no cimo da serra. Parecia apressado. Madalena sorriu, notando a sua pressa. Desceu furtivamente até ao portão. Colocou um xaile grosseiro sobre os ombros. E misturando-se com as raparigas que vinham do trabalho do campo, saiu para o terreiro.
Quando o pastor se aproximou da árvore atrás da qual se escondera, Madalena saiu-lhe ao caminho. José perguntou:
— Onde está o teu pai?
Parecia aflito. Madalena sorriu-lhe gaiata.
— Não te apoquentes... Está para o campo. Só deve vir quase à noitinha.
Ele pareceu ainda mais inquieto.
— É isso mesmo!
— O quê?
José não sorria, não beijava as mãos da sua menina. Segredou-lhe:
— Vai para dentro! Vim avisar-te de que tenho um assunto grave a tratar esta tarde.
Foi a vez de ela se inquietar.
— Que assunto?
— Os de Butrón preparam uma cilada ao teu pai...
— Onde?
— Para lá da ponte. Quero avisá-lo!
A menina juntou as mãos. Implorou:
— Então vai depressa, José! Vai depressa... mas que eles não te apanhem também!
— Eles não sabem do nosso segredo. Ninguém o conhece. Só nós os dois!
— Então vai!
— Até amanhã! Não saias de ao pé da tua mãe, nem que venham dizer-te que teu pai te chamou!
E José partiu correndo. E a menina entrou em casa chorando. Tirou o xaile grosseiro e pretextou uma indisposição para justificar a sua angústia.

A uns duzentos metros da ponte, José surgiu no caminho, metendo-se quase debaixo das patas do cavalo de D. Pedro de Miranda. O fidalgo estacou. Os dois servidores que o acompanhavam rodearam José. E o fidalgo perguntou, surpreendido:
— Que queres de mim?
José não perdeu tempo com rodeios.
— Senhor! Venho avisar-vos de que a uns vinte metros da ponte está preparada uma emboscada para vos matarem!
D. Pedro franziu as sobrancelhas, enrugando a testa tostada pelo sol.
— Uma emboscada? Preparada por quem?
— Bem o sabeis, senhor!
— Pelos de Butrón?
— Esses mesmos!
— E como o soubeste?
— Fui lá vender queijos e lã. Sou amigo de um dos servidores da casa. Ouvi umas coisas suspeitas... e consegui saber toda a verdade.
— E porque me vens avisar?
Pela primeira vez, José mostrou-se perturbado:
— Senhor, eu... Bem vê...
O outro interrompeu-o:
— Conheces o Butrón melhor do que a mim!
— Sou português, senhor… e vós estais em perigo!
D. Pedro de Miranda ordenou a um dos seus servidores:
— Desmonta e vai verificar, a pé, se este rapaz fala verdade. Despacha-te!
— Se demorais, eles podem vir até aqui. E são alguns dez!
D. Pedro meneou a cabeça.
— Acredito em ti, rapaz! Daremos a volta pelo lado do poente. É mais uma hora de caminho. Depois avisarei o nosso rei. Ou tomo uma desforra... ou eles terão de ser expulsos!
Pouco tempo depois, o criado voltava, confirmando a emboscada. Num ar galhardo de fidalguia, D. Pedro tirou do peito uma corrente de ouro e colocou-a ao pescoço do jovem pastor, dizendo-lhe:
— Vai! Hei-de compensar-te melhor!
— Senhor, de nada mais preciso senão da vossa simpatia! O gado que apascento é meu. A casa onde habito é minha.
— Pois bem! Se algum dia precisares de mim, basta que abras a camisa e mostres essa corrente de ouro. Volta em paz para a tua casa.
— Que Deus vos acompanhe, senhor!
O Sol vinha descendo no horizonte. Mas a luz ainda era forte. D. Pedro deu rédeas ao cavalo e seguiu na direcção do poente.

Três anos passaram. O senhor de Butrón acabou por vender os terrenos em Benavila e comprar um castelo em Achorroz. Mas quem comprou a casa de Butrón foi um sobrinho de D. Pedro que regressara da guerra contra os infiéis. Logo D. Pedro pensou casá-lo com sua filha Madalena. E porque ela era bonita, também seu primo logo ficou apaixonado. Porém, Madalena amava José. Era-lhe impossível dar o seu coração a outro que não fosse o jovem que deixara de apascentar rebanhos e viera também da guerra com o posto de alferes.
Deste amor só o confessor de Madalena tinha conhecimento. E então, a pedido da jovem, que chorava dia e noite, o sacerdote conseguiu que o bispo não concedesse a licença de casamento necessária, invocando o próximo parentesco entre Madalena e seu primo. Parecia salva a situação. D. Pedro ficara furioso e fizera novo pedido. Porém, seu sobrinho — homem de poucos escrúpulos — julgou que arranjara outro meio para obter licença. E se bem o pensou, melhor o fez.

O Inverno chegou com todo o seu cortejo de sombras, chuva e ventania. Dobravam-se as ramadas das árvores, gemendo doloridas. Uivava o vento num desespero incontido, levando na sua frente a chuva, que ia e voltava, dançava e caía com fragor. O vento não se limitava a correr num sentido: fazia remoinho, como um louco que não sabe o que quer nem para onde vai.
A noite tornava ainda mais lúgubre esse quadro de invernia. Alguém comunicara a Madalena que o primo lhe rondava a porta, mesmo depois de se ter despedido para se ir deitar. A jovem fechara-se à chave, única forma de se isolar. O vento continuava zumbindo. E foi ainda o vento que lhe trouxe aos ouvidos uma ária muito sua conhecida: a canção predilecta de José. Mas a canção não tinha o ritmo alegre que ele lhe costumava dar. Era como um lamento, um pedido de alerta, que vinha de bem perto!
Madalena, com o coração batendo fortemente, abriu a janela. No varandim estava José. A jovem recuou.
— José! Que fazes aqui?
— Venho prevenir-te de que o teu primo possui uma chave do teu quarto e acaba de reentrar em casa.
— Uma chave? Mas quem lha deu?
— Não sei. Mandou-a fazer por outra que alguém obteve. Foi hoje buscá-la.
— E que pretende?
— Entrar neste quarto e comprometer-te, para teres de casar com ele!
Madalena levou as mãos ao rosto.
— Meu Deus! Se isso é verdade...
— Verás que não tarda aí!
— Que hei-de fazer, então? Se te vêem aqui...
— Foge comigo pela janela! Tenho uma corda por onde subi. Descerei contigo!
— Mas é muito alto!
— Eu sei. Mas saberei segurar-te.
— E para onde me levas?
— Para um convento. De lá comunicarás com teu pai e contar-lhe-ás o sucedido.
— E se ele não acreditar?
— Escolherás o melhor caminho.
Junto à porta, Madalena sentiu os passos de seu primo. Horrorizou-se e pediu a José:

Vamos descer! Prefiro ficar no convento para sempre, a ser esposa de um homem a quem detesto!
Não havia tempo a perder. José pegou em Madalena e começou a descida.
Com vagar, a chave rodou na fechadura do quarto de Madalena. Um homem abriu a porta e entrou. Não havia luz, mas a janela aberta batia com o vento. O homem chamou baixinho:
— Madalena! Madalena!
Como ninguém respondesse, correu à janela. Olhou na escuridão. Uma corda forte pendia e redemoinhava enquanto o par descia apressado. O homem compreendeu o que estava acontecendo. O ciúme e o desespero tomaram-no. Então, puxando pela espada, cortou a corda de um só golpe. No meio da tempestade, um grito de horror soou mais alto. O par enamorado acabava de encontrar a morte na queda violenta!
O vento rugiu mais forte ainda. Os cães uivaram. Acordaram as gentes da casa. O assassino fugiu. Porém, ao fugir, esbarrou na escada com D. Pedro. Este perguntou:
— Que fazes aqui?
— Venho de impedir uma fuga!
E empurrando o tio, abalou porta fora e nunca mais foi visto.
D. Pedro subiu as escadas, correndo para o quarto da filha. Lá em cima, a porta escancarada, a janela a bater. Acendeu uma luz. O aposento estava deserto. Foi à janela. Chamou:
— Madalena! Madalena!
De súbito reparou na corda cortada e um pensamento horroroso fê-lo correr até ao fosso do castelo. E aí viu dois corpos enlaçados. Dois corpos sem vida, jorrando sangue. Gritou:
— Tragam-me aqui Madalena e o outro! Quero saber quem é!
Depressa trouxeram os corpos ensanguentados, olhos abertos num espanto. Taparam o rosto de Madalena, para que D. Pedro o não visse, tão dilacerado estava. Mas quando o castelão se debruçou sobre o outro corpo, com uma luz que dificilmente se conservava acesa, no peito do morto viu uma corrente de ouro bem sua conhecida.
Levou as mãos ao rosto e ficou assim à chuva e ao vento, até que o obrigaram a regressar a casa.
Poucos dias depois, no mesmo local onde o par enamorado encontrara a morte, D. Pedro mandou erguer uma cruz com a seguinte inscrição: «José e Madalena. Rezem um padre-nosso por suas almas.»

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