Este texto foi retirado dos comentários de blog ponte do sor
Transcrevo na íntegra.
José ficou sem papéis para provar que existe
De sapatos emprestados e camisa comprada à pressa, José Rodrigues chega de Abrantes "onde foi tratar dos papéis". Não sobrou um único documento que lhe comprove a identidade, nem uma nota dos "100 contos que guardava em casa". O pátio da vivenda, com vista para o Zêzere, está intacto - mas aberta a porta, nada resta do lado de dentro a não ser um amontoado de tijolo.
A casa ardeu no sábado e José ainda não tem "a cabeça no sítio". Está desesperado. No banco, o pouco que restava da reforma "já foi quase todo". Nas calças, na camisa, na comida. Dorme no corredor de uma casa emprestada, onde não se sente bem. Todos os dias vem fazer a barba e comer uma sandes "ou qualquer coisinha" à única divisão que restou, um cubículo com uma botija de gás que "só não explodiu por sorte". Aos 65 anos, o fogo tirou-lhe a vergonha de chorar em público e não consegue fazer outra coisa sempre que desenha no ar as divisões que já não existem. "Ali era o quarto e a televisão, ali a outra cozinha." "Só queria que me ajudassem a construir isto outra vez." Mas, até agora, nenhuma ajuda apareceu.
Em Fontes, José Rodrigues não é caso único. As chamas tomaram doze casas. E a alguns quilómetros dali, na Pucariça, o domingo de incêndios levou outras oito.
Encastrada na encosta, a casa de Adriano Teodoro desafiou as chamas tal como há décadas desafia a gravidade e o isolamento. As quatro divisões que, todas juntas, não medem mais do que a largura do carreiro à sua frente, sobreviveram ao ataque do fogo com alguns arranhões. No meio do azar, Adriano teve sorte.
Os 85 anos já lhe cravaram muitas rugas na cara, mas nunca lhe tinham cravado tamanho desgosto. Viúvo, vive sozinho e foi sozinho que se fez à estrada logo que viu minguar a distância entre ele e as chamas.
"Não sou medroso, mas tive que abrir caminho para salvar o corpo." Na varanda da casa da sobrinha, passou a noite a antecipar a desgraça. Às 07.00, ainda o fogo não se tinha cansado de lavrar a terra, já estava de volta para dar comida aos pombos. Eram 25 - "só faltava pousarem-me no ombro" - mas nenhum sobrou. "Atrapalharam-se e, em vez de fugir do lume, fugiram para as chamas."
Adriano não é homem de medos, mas também não é homem de muitas palavras. Elas faltam-lhe para falar da tristeza que o fogo lhe deixou e faltam-lhe para falar sobre a forma como vai reconstruir a sua vida rodeado de cinza. Sem luz nem água, ainda não teve tempo para avisar o proprietário, a quem paga 35 dos 200 euros que recebe de reforma.
A poucos metros, onde antes era pinhal e quintais, numa noite ergueu-se um cemitério de árvores carbonizadas. Uma cancela separa a terra queimada de ninguém da terra queimada de outro idoso que ali vivia. Este teve menos sorte do que Adriano sem família, está na Santa Casa de Abrantes, até que os serviços sociais lhe encontrem solução. A casa é que já não pode voltar. O telhado desabou, o frigorífico ardeu, o chão mergulhou para debaixo do soalho de madeira.
O terreno ao lado não está melhor. João Rei estaciona o táxi, enquanto caminha pelas telhas partidas. Os dois andares, onde nasceu com os seis irmãos, estão reduzidos a cascalho. As chamas não deixaram mais do que uma herança de tijolos partidos para serem repartidos pelos sete. A mãe, a única que ali vivia, está em casa de um deles e nem sonha com o que aconteceu. "Tem 90 anos. O pior vai ser quando quiser voltar." Mas um problema de cada vez. As chamas andam perto e o tempo é precioso para se gastar em memórias. Em Martinchel, a aldeia onde vive, o fogo continua a destruir vidas.
Rute Araújo
Transcrevo na íntegra.
José ficou sem papéis para provar que existe
De sapatos emprestados e camisa comprada à pressa, José Rodrigues chega de Abrantes "onde foi tratar dos papéis". Não sobrou um único documento que lhe comprove a identidade, nem uma nota dos "100 contos que guardava em casa". O pátio da vivenda, com vista para o Zêzere, está intacto - mas aberta a porta, nada resta do lado de dentro a não ser um amontoado de tijolo.
A casa ardeu no sábado e José ainda não tem "a cabeça no sítio". Está desesperado. No banco, o pouco que restava da reforma "já foi quase todo". Nas calças, na camisa, na comida. Dorme no corredor de uma casa emprestada, onde não se sente bem. Todos os dias vem fazer a barba e comer uma sandes "ou qualquer coisinha" à única divisão que restou, um cubículo com uma botija de gás que "só não explodiu por sorte". Aos 65 anos, o fogo tirou-lhe a vergonha de chorar em público e não consegue fazer outra coisa sempre que desenha no ar as divisões que já não existem. "Ali era o quarto e a televisão, ali a outra cozinha." "Só queria que me ajudassem a construir isto outra vez." Mas, até agora, nenhuma ajuda apareceu.
Em Fontes, José Rodrigues não é caso único. As chamas tomaram doze casas. E a alguns quilómetros dali, na Pucariça, o domingo de incêndios levou outras oito.
Encastrada na encosta, a casa de Adriano Teodoro desafiou as chamas tal como há décadas desafia a gravidade e o isolamento. As quatro divisões que, todas juntas, não medem mais do que a largura do carreiro à sua frente, sobreviveram ao ataque do fogo com alguns arranhões. No meio do azar, Adriano teve sorte.
Os 85 anos já lhe cravaram muitas rugas na cara, mas nunca lhe tinham cravado tamanho desgosto. Viúvo, vive sozinho e foi sozinho que se fez à estrada logo que viu minguar a distância entre ele e as chamas.
"Não sou medroso, mas tive que abrir caminho para salvar o corpo." Na varanda da casa da sobrinha, passou a noite a antecipar a desgraça. Às 07.00, ainda o fogo não se tinha cansado de lavrar a terra, já estava de volta para dar comida aos pombos. Eram 25 - "só faltava pousarem-me no ombro" - mas nenhum sobrou. "Atrapalharam-se e, em vez de fugir do lume, fugiram para as chamas."
Adriano não é homem de medos, mas também não é homem de muitas palavras. Elas faltam-lhe para falar da tristeza que o fogo lhe deixou e faltam-lhe para falar sobre a forma como vai reconstruir a sua vida rodeado de cinza. Sem luz nem água, ainda não teve tempo para avisar o proprietário, a quem paga 35 dos 200 euros que recebe de reforma.
A poucos metros, onde antes era pinhal e quintais, numa noite ergueu-se um cemitério de árvores carbonizadas. Uma cancela separa a terra queimada de ninguém da terra queimada de outro idoso que ali vivia. Este teve menos sorte do que Adriano sem família, está na Santa Casa de Abrantes, até que os serviços sociais lhe encontrem solução. A casa é que já não pode voltar. O telhado desabou, o frigorífico ardeu, o chão mergulhou para debaixo do soalho de madeira.
O terreno ao lado não está melhor. João Rei estaciona o táxi, enquanto caminha pelas telhas partidas. Os dois andares, onde nasceu com os seis irmãos, estão reduzidos a cascalho. As chamas não deixaram mais do que uma herança de tijolos partidos para serem repartidos pelos sete. A mãe, a única que ali vivia, está em casa de um deles e nem sonha com o que aconteceu. "Tem 90 anos. O pior vai ser quando quiser voltar." Mas um problema de cada vez. As chamas andam perto e o tempo é precioso para se gastar em memórias. Em Martinchel, a aldeia onde vive, o fogo continua a destruir vidas.
Rute Araújo